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O lobo perde o pêlo?

Escrito por Rafael Gandara D’Amico e Sergio Ruy David Polimeno Valente   

Nos últimos meses, tem tido destaque nos meios de comunicação a tentativa de restringir a publicidade de produtos voltados para o público infantil. Tal iniciativa, materializada nos projetos de lei 5921/2001, de autoria do Deputado Luiz Carlos Hauly, e no substitutivo ao projeto da Deputada Maria do Carmo Lara, conta com o apoio de grande parte dos psicólogos e educadores, mas, por outro lado, sofre críticas pesadas da maioria dos seguimentos de comunicação de massa e também do setor publicitário, a exemplo do que se pode ler no editorial da Folha de São Paulo de 23/10/2006 muito preocupado com o de fato de que: “não se enfrentam mosquitos com tiros de canhão”.

Cabe destacar ainda que o debate midiático em torno da questão tem se pautado pelas seguintes perguntas: a publicidade faz mal à criança? A criança tem discernimento suficiente para ser alvo de campanhas publicitárias? Deve ou não ser restringida a publicidade infantil por meio de lei?

Em que pese serem as questões apontadas importantíssimas, pois tratam das justificativas materiais, motivos e efeitos da exposição das crianças ao mercado de consumo, sob as duas visões antagônicas, é necessário chamar a atenção para um fato: a publicidade voltada a crianças já está proibida, mesmo sem a aprovação dos novos textos legais mencionados. Ou seja, pela interpretação do ordenamento jurídico atual, podemos identificar normas que proíbem ou, na pior das hipóteses, restringem a veiculação, pelos meios de comunicação, de publicidade visando a atingir o público infantil.

O artigo 36 da lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) traz em seu texto a seguinte disposição:

Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal.

Esse dispositivo é bem claro quanto ao seu conteúdo. Segundo a norma, a publicidade é ilegal se não puder ser identificada como tal, de forma fácil, pelo consumidor. A lei se refere, nesse caso, ao consumidor médio, ou seja, ao perfil comum do consumidor do produto ou serviço anunciado. Logo, se for razoável esperar de um determinado grupo de consumidores a identificação da propaganda como tal, sem fazer confusão com outros elementos de mídia ou comunicação, não há infração a esse artigo da lei. Contudo, há que se considerar alguns outros aspectos.

No caso da publicidade de produtos voltados para crianças, o “consumidor” a que se refere a lei deve ser entendido como o grupo de pessoas a que se dirige o apelo comercial do anuncio, ou seja, às crianças propriamente ditas, pois são elas o alvo das propagandas desses produtos, como brinquedos por exemplo, ainda que os compradores efetivos sejam seus pais. Assim, a pergunta que se deve fazer é: a partir de que idade uma criança pode diferenciar uma propaganda televisiva da própria atração ou programa infantil na qual está inserida? Dependendo da resposta, que pode ser obtida em estudos científicos conduzidos por psicólogos, chega-se à primeira e parcial conclusão. A lei veda qualquer tipo de publicidade de produtos voltados para crianças abaixo da idade em que se desenvolve tal discernimento. Este é o primeiro ponto.

O segundo ponto é o artigo imediatamente seguinte do mesmo diploma legal, que traz disposição ainda mais explícita, que complementa a primeira e segue seu espírito:

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.

É evidente que qualquer propaganda de brinquedo, por mais bem feita e honesta que possa ser, sempre se aproveitará da deficiência de julgamento e experiência da criança, na medida em que provoca sugestões de consumo em um público que não possui ainda boa compreensão do sistema de mercado e não está inserido no âmbito das relações compra, venda e trabalho.

Outra lei bastante famosa que trata do assunto da publicidade infantil é o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90)

O artigo 76 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) preceitua que “As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.” Seu parágrafo único impõe, ainda, a necessidade de classificação desses programas. Se as emissoras de televisão devem por lei apenas exibir programas educativos, culturais e artísticos naqueles horários, sendo que todos têm de, previamente, passar pelo crivo do Ministério da Justiça para sua classificação, deve também a publicidade televisiva, veiculada nos intervalos desses programas, respeitar a mesma imposição legal. Ou seja, veda-se a propaganda de produtos infantis, uma vez que a função informativa da publicidade, que existe com relação ao público adulto, não se verifica com o público infante em razão de sua limitada capacidade de compreender o que é informação e o que é sugestão. Logo, a publicidade voltada à criança, visando a sugestão de consumo, é imprópria para tais horários, não ocorrendo o mesmo com aquela voltada para o público adulto, que pode diferenciar a parte sugestiva da informativa.

Além disso, deve -se levar em conta que o Código Civil de 2002 (como já fazia o de 1916) dispõe expressamente, em seu artigo 3, sobre a incapacidade jurídica dos menores para aquisição de direitos e deveres em nome próprio, inabilitando-os portanto para a participação autônoma no mercado de consumo:

Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I – os menores de dezesseis anos;”

Outra importante previsão legislativa está presente nas disposições preliminares do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade

A legislação reconhece a criança e o adolescente como seres humanos em estágio de desenvolvimento e, assim sendo, gozam eles de uma proteção especial, proteção esta voltada para afastá-los de qualquer obstáculo que possa mitigar seu pleno amadurecimento físico, mental, moral, espiritual e social. Conforme se observa a partir da leitura de outros dispositivos da legislação, a exploração da ingenuidade das crianças ou mesmo a propagação de valores não condizentes com a ética social, como acontece costumeiramente em campanhas publicitárias, é um óbice à ideal inserção dos infantes no mundo adulto do mercado e das relações comerciais. Está proibido por lei.

Ainda, é preciso lembrar que a própria Constituição Federal determina especial proteção das crianças como dever, não mera faculdade, do poder estatal:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

Conseqüentemente, levando em conta o papel hierárquico superior que a lei maior desempenha no ordenamento jurídico pátrio, concluímos que as leis, tanto aquelas em vigor como as que estão em fase de tramitação legislativa, apontando a necessidade de afastamento das crianças de um convívio prematuro e nocivo com o mundo adulto das trocas e relações comerciais, apenas tornam mais evidentes as orientações impostas pelo constituinte originário, máxima representação da vontade e soberania popular.

O legislador, como fez e continua fazendo, deve editar leis em consonância com o espírito da Constituição, cabendo ao Ministério Público, Poder Judiciário e órgãos do Executivo fazer cumprir as escolhas feitas pelo povo brasileiro formalmente representado pelos constituintes.

Mais ainda, independentemente de todas essas imposições legais das quais se deduz a proibição ou severa restrição de horário da publicidade infantil, é mister salientar que os projetos de lei em tramitação no Congresso cumprem importante papel de regramento específico da proibição ou restrição, impondo penas, meios de efetivação mais claros e regras mais detalhadas, o que pressionaria os órgãos públicos a fazer cumprir as normas já existentes mas, infelizmente, ignoradas. Assim, é de grande importância que sejam aprovados nas casas legislativas, para que se dê continuidade a uma escolha que a sociedade já fez há muito tempo. Não há que se criticar, portanto, uma eventual “fúria legiferante” dos defensores dos projetos, já que a lei, nesse caso, já existe.

Alguns entendem que o projeto de lei impondo restrições à publicidade infantil seria desnecessário por avançar em matéria previamente disciplinada pelas normas do CONAR (Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária), o Código de Auto-Regulamentação Publicitária. Tal “Código”, no entanto, não tem “força de lei”, uma vez que não é um ato legislativo, mas apenas um código de ética elaborado para indicar o que seria a boa conduta em publicidade. Foi elaborado pelos maiores interessados em restringir a necessidade de satisfações ao interesse público, isto é, os representantes das empresas exploradoras da publicidade. Será que é conveniente deixar apenas a boa vontade dos maiores interessados em auferir lucro com publicidade como garantia do bom desenvolvimento intelectual e mental de nossas crianças? O lobo pode cuidar bem das ovelhas?

Por fim, fica uma reflexão. O Direito Brasileiro, como um todo, procurou por diversas maneiras afastar as crianças do mundo do consumo e do trabalho, seja regulando a publicidade, a capacidade civil ou proibindo o trabalho infantil. Quem teria, então, interesse em trazê-las de volta?



  1. afirmaçoes positivas (Reply) on quarta-feira 18, 2007

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