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Xerox de livro – parte 1: é ilegal copiar capítulos para pesquisa?

Recentemente, voltou a ter destaque na mídia brasileira a polêmica sobre as cópias de páginas de livros nas universidades. Com dois artigos sobre o tema, procurarei expor os aspectos jurídicos da discussão e desmistificar o papel da lei no tocante ao assunto. Neste primeiro texto, discorrerei sobre a legalidade da cópia de capítulos de livros e artigos de revistas científicas.

A Associação Brasileira de Direitos Reprográficos – ABDR, em conjunto com parte do Poder Público, intensificou sua atuação no sentido de reprimir a prática do xerox, sob o argumento de que tais atos são ilegais. A ABDR cita, a seu favor, a lei 9610/98, que protege os direitos do autor sobre sua propriedade intelectual. Segundo a entidade, ao copiar capítulos de obras ou artigos de revistas, viola-se o preceito legal e o direito autoral.

Em oposição, alunos, bibliotecários e professores universitários, desprovidos, na sua maioria, de meios para a aquisição de todas as obras necessárias para o seu estudo regular e manutenção das atividades acadêmicas, reagem com manifestações e campanhas, argumentando não ser possível a atividade acadêmica sem o xerox de partes de livros, visto que a compra integral de todas as obras seria impraticável.

Mas, afinal, quem tem razão?
A aparente controvérsia jurídica, nesse caso, se dá por conta do próprio texto da lei 9610/98, que traria em si, em tese, uma lacuna.

O texto legal garante, de fato, os direitos autorais sobre a obra escrita e proíbe a cópia não autorizada:

Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

I – a reprodução parcial ou integral;

No entanto, o artigo 46 do referido diploma traz, também, uma série de exceções à regra geral de proteção, as chamadas limitações ao direito autoral. Entre elas, destaque para o dispositivo que autoriza a reprodução de trechos para para uso privado:

Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais:

II – a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro;

Claro está, portanto, que a reprodução de pequenos trechos da obra para uso do estudante não viola o direito autoral. A grande questão, então, é: o que significa a expressão “pequenos trechos”? A ABDR sustenta que um capítulo de livro extrapola essa definição. Já os estudantes e professores dizem o contrário. Como o raciocínio jurídico resolve essa questão?

De fato, o texto da lei 9610/98, por não definir o significado da expressão, é aparentemente lacunoso. Mas, nesse caso, apesar na omissão do texto, não é lacunoso o Direito, como veremos abaixo.

Os textos legais, ou seja, a Constituição, as leis, decretos, etc., são apenas algumas das chamadas fontes do Direito. Assim, e é importante lembrar, existem outras muito relevantes, não materializadas na escrita. Entre essas fontes não-escritas do Direito, destaca-se o costume. O costume nada mais é do que uma série atos reiterados no tempo, que se incorporam nos nossos hábitos de forma a criar normas válidas e respeitadas. Um bom exemplo de direto costumeiro seria o cheque pós datado (ou pré-datado, na linguagem do dia-dia).

Ora, mas o que tem a ver o costume com a lei de direitos autorais? Simples. Na falta de uma definição legal para a expressão “pequenos trechos”, pode-se buscar no costume, ou seja, a prática do dia-dia, na rotina acadêmica, o significado mais adequado do conceito “pequeno trecho para uso privado do copista”. Vale lembrar que a própria Lei de Introdução ao Código Civil diz, em seu artigo 4, que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”

Sabe-se que, desde quando a tecnologia permite, é praxe mais do que aceita e arraigada, nas instituições de ensino e bibliotecas, a cópia de capítulos de livros. É notório, ademais, que tal prática nunca obstou que os estudantes e professores continuassem a ser grandes compradores de publicações. E, é claro, não é razoável pensar que o estudante, se não pudesse copiar um capítulo, compraria o livro só para consultar uma parte dele, pelo simples fato de que isso não condiz com a capacidade econômica desse mercado consumidor. O costume, nesse caso, manda considerar, sim, capítulos de livros e artigos de revistas como “pequenos trechos”, afim de enquadrar a situação na exceção do inciso II artigo 46. Essa praxe acadêmica, que – repito – pode vir a ter força de lei diante da lacuna do texto legal, foi, inclusive, ratificada recentemente pelo Conselho da universidade mais importante do país, a Universidade de São Paulo – USP, ao editar a resolução 5213 de 02/06/2005 regulamentando a Lei 9610/98 no âmbito da escola e ao julgar improcedente um recuso da ABDR contra essa mesma resolução, ocasião em que considerou, sob os mais diversos argumentos, que não há qualquer violação de preceito legal na cópia de capítulos de livros ou artigos científicos, desde que para uso privado do estudante e sem intuito de lucro por este, como se pode ver do trecho a seguir:

Diante do exposto, sugiro não dar provimento ao recurso da ABDR uma vez que a interpretação da Lei 9.610 de 19/02/1998 de forma restritiva afeta diversas liberdades constitucionais, inclusive a que dispõe sobre a autonomia das universidades (Art. 207, CF). A aplicação literal dos termos da Lei sem os necessários contrapontos, fundamentados nos direitos constitucionais, está gerando insegurança entre docentes, discentes e servidores não docentes, perturbando o bom andamento do ensino e da pesquisa na universidade. Voto pela manutenção da Resolução 5.213 de 02/06/2005.

E, adiante, trecho da Resolução 5213 de 02/06/2005, confirmada pela decisão acima:

Artigo 1º – As normas constantes desse ato deverão ser observadas em todas as instalações e órgãos da Universidade de São Paulo, quer sejam vinculados diretamente à autarquia, quer se trate de permissionários ou concessionários de serviços.

Artigo 2º – Visando garantir as atividades-fins da Universidade, será permitida a extração de cópias de pequenos trechos, como capítulos de livros e artigos de periódicos ou revistas científicas, mediante solicitação individualizada, sem finalidade de lucro, para uso próprio do solicitante.

É mister mencionar também que todo e qualquer texto de lei, decreto, portaria, regulamento, etc. que exista em nosso país deve ser interpretado, sempre, à luz da Constituição Federal, que é, grosso modo, a lei maior, a que contém as bases e a estrutura do Direito Brasileiro. E está lá, em seu artigo 5, garantido o direito à informação, o qual deve orientar o entendimento dessa lei, notadamente em casos de dúvida como esse. Não custa frisar que o objetivo inconteste de toda a lei de proteção à propriedade intelectual, em qualquer país do mundo, não é garantir apenas o direito de um individuo sobre uma obra, mas sim o benefício coletivo que a inventividade e criatividade dos autores irá produzir em prol da sociedade como um todo. Assim, protegendo o autor, conferindo a ele a exclusividade da exploração de sua obra, se está estimulando a atividade criativa e inventiva, o desenvolvimento intelectual e tecnológico, que é bom para toda a sociedade. A garantia individual, portanto, é uma espécie de “direito-meio”, enquanto que o benefício coletivo é “direito-fim” na consecução do objetivo da lei. Assim, em caso de dúvida sobre a legislação, deve prevalecer sempre o entendimento que coincida com o valor maior que está por trás da lei, sem, contudo, ferir direitos individuais. Neste caso concreto, a cópia de capítulos não fere direitos individuais de propriedade, pois não há prejuízo causado pela conduta (os estudantes e professores não deixam de comprar livros por causa disso). Ao mesmo tempo, tal prática é essencial para a atividade acadêmica, estimulando, inclusive, novas produções intelectuais, capacitando e aumentando o próprio mercado consumidor de livros e revistas. Assim, está em perfeito acordo com o objetivo maior do Direito Autoral.

Portanto, pode-se concluir que, do ponto de vista da legislação, a cópia de capítulos de livros para uso privado e sem lucro não é ilegal, ou seja, é perfeitamente cabível e juridicamente permitida,.

Caberia agora também, por fim, depois de tanto raciocínio puramente jurídico, uma reflexão de ordem mais filosófica. Qual seria o sentido de tratar como inimigos aqueles de quem provém a sua sobrevivência? Teria respaldo na lógica chamar de bandidos os seus próprios consumidores, colocando a polícia para perseguir estudantes, bibliotecários e professores universitários que tanto contribuem para a ciência (e para o bolso das editoras) nesse país? E uma indagação de ordem econômica: porque os preços de livros são tão altos no Brasil, mesmo sabendo que o livro e todos os seus insumos ( papel, tinta, etc) gozam de imunidade tributária, ou seja, não sofrem a incidência de impostos? Pensando bem, essas reflexões podem ser consideradas de ordem jurídica. Porque o bom senso, como costume que é (ainda que não para todos), também é Direito.

No próximo artigo sobre o tema Direitos Autorais, abordarei a questão sobre o xerox integral de obras esgotadas, estrangeiras ou de difícil acesso.



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